Atraídas por propagandas fascinantes que prometem um mundo
de sonhos em um pacote de salgadinhos ou um pirulito, por brindes-brinquedos e
pelas intermináveis coleções, as crianças se tornaram as principais vítimas
desses alimentos e passaram a influenciar nas compras de toda a família. Quais
as conseqüências de seguirmos ao sabor do vento das grandes corporações
fabricantes de alimentos? E de não termos controle sobre a publicidade dirigida
ao público infantil? O artigo é de Noemia Perli Goldraich.
Noemia Perli
Goldraich (*)
Há 40 anos trabalho como Nefrologista Pediátrica. Não recordo
de ter identificado, antes dos anos 90, um único caso de pressão alta em
criança que não estivesse relacionada a algum problema grave como doença nos
rins, nas artérias renais, na aorta ou a tumores raros. Pressão alta era uma
doença de adultos. Era!
Infelizmente, na última década, mais crianças passaram a sofrer de hipertensão
arterial, uma doença crônica, isto é, que se arrasta por toda a vida e que
necessita de medicação continuada. E qual a causa dessa repentina mudança?
Múltiplos fatores podem causar a pressão alta mais comum - também chamada de
hipertensão arterial essencial - mas os principais são a combinação de
obesidade e ingestão de quantidades excessivas de sal na alimentação.
Antes de seguir em frente, é preciso que se diga que a pressão alta não é um
probleminha qualquer. É fator de risco importante para infarto do miocárdio e
acidentes vasculares cerebrais (os derrames cerebrais), entre tantas outras
consequências. E o resultado da obesidade iniciada na infância é o aparecimento
de hipertensão arterial em crianças e adolescentes, de diabetes melito, doenças
vasculares como infarto do miocárdio, tromboses, derrames cerebrais e todas as
suas complicações.
Bem, mas não é de hoje que o sal está presente na alimentação humana. Então,
por que agora estaria prejudicando também as crianças? O problema não é
exatamente o sal, mas sim o sódio presente nele e é esse último que causa o
aumento da pressão. É aí que entram os alimentos industrializados ou altamente
processados. Há muita diferença na quantidade de sal (cloreto de sódio)
colocado numa refeição cotidiana preparada em casa e os tais produtos
industrializados. Nestes, o sódio está presente, além do sal, na estrutura dos
conservantes e aromatizantes, usados para aumentar o período de validade ou
para realçar o sabor, resultando em quantidades exageradamente grandes de
sódio.
Nesse contexto, é preciso considerar que os hábitos alimentares dos brasileiros
mudaram significativamente nos últimos anos. Saímos do feijão, arroz e bife
para as comidas congeladas, as pré-prontas, os salgadinhos, os biscoitos e
refrigerantes. Atraídas por propagandas fascinantes que prometem um mundo de
sonhos em um pacote de salgadinhos ou um pirulito, por brindes-brinquedos e
pelas intermináveis coleções, as crianças se tornaram as principais vítimas
desses alimentos e passaram a influenciar nas compras de toda a família. Sem
entender o que leem ou sem ler o que informam os rótulos, os pais também se
seduzem pelos coloridos sinais de adição a anunciar + ferro, + cálcio, +
vitaminas. Na verdade, estão comprando gordura, sal e açúcar, crentes de que
seus filhos estão sendo bem alimentados. É isso mesmo. Em geral, as fantásticas
embalagens coloridas contêm muita caloria e baixíssimo valor nutricional.
Estudos que vem sendo amplamente divulgados pelo Ministério da Saúde apontam
que o brasileiro está ingerindo mais que o dobro de sal da quantidade diária
recomendada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que é de 5 gramas, o que
equivale a uma colher de chá. O brasileiro, em média, está consumindo 12 gramas
ao dia, o equivalente a uma colher de sopa. Muitos produtos que hoje fazem
parte da dieta usual de crianças contêm quantidades exageradas de sal, sem que
os pais percebam o perigo. Você sabe que um pacote de massa instantânea
pré-cozida tipo miojo contém 5g de sal, que é a quantidade máxima diária
recomendada para um adulto? Haja rins para dar conta!
Pesquisa publicada neste janeiro por um grupo da Filadélfia, no
American Journal of Clinical
Nutrition, uma importante revista da área, mostrou a relação entre o
desenvolvimento da aceitação do gosto salgado e uma alimentação complementar,
administrada a bebês, contendo amido (batatas, arroz, trigo, pão, bolachas).
Foram comparados dois grupos de lactentes: um recebeu alimentação complementar
com amido e o outro só comeu frutas em complemento ao leite. A aceitação para o
gosto salgado já estava presente aos seis meses nos lactentes alimentados com
amido e ausente nos que receberam só frutas. Os lactentes do primeiro grupo
apresentaram maior probabilidade de lamber o sal da superfície dos alimentos na
pré-escola, bem como de comer sal puro. Assim, segundo a pesquisa, experiências
alimentares bem precoces (primeiros meses de vida) exercem um papel muito
importante em moldar a resposta ao gosto salgado de lactentes e pré-escolares.
Sabemos que a formação do hábito alimentar se dá desde a gestação até cerca de
dois anos de idade. E uma vez consolidado o padrão de gosto, fica difícil
mudar. A isso, é preciso associar o padrão de uma infância sedentária em frente
à televisão, computador e vídeo games. O resultado tem sido a obesidade. Dados
do IBGE mostram que o excesso de peso e a obesidade são encontrados com grande
frequência, aos cinco anos de idade, em todos os grupos de renda e em todas as
regiões brasileiras.
Houve um salto no número de crianças de 5 a 9 anos com excesso de peso ao longo
de 34 anos: em 2008-2009, 34,8% dos meninos estavam com o peso acima da faixa
considerada saudável pela OMS. Em 1989, este índice era de 15%, contra 10,9% em
1974-75. Observou-se padrão semelhante nas meninas que, de 8,6% na década de
70, foram para 11,9% no final dos anos 80, e chegaram aos 32% em 2008-09.
O tempo de exposição à mídia também vem aumentando. Em média, as crianças ficam
mais de 5 horas diárias em frente à TV, tempo superior ao permanecido na
escola, que é de 4h30min. Além disso, o padrão das crianças de hoje é acessar
varias mídias ao mesmo tempo e em quase todas há inserção de propaganda, ou
seja, as crianças ficam expostas a um bombardeio mercadológico. Estudo feito
pela Universidade de São Paulo, em 2007, mostrou que 82% dos comerciais
televisivos sugeriam o consumo imediato de alimentos ultraprocessados, 78%
mostravam personagens ingerindo-os no ato e 24% dos alunos expostos a tais
mensagens apresentaram sobrepeso ou obesidade. Já um levantamento realizado
pelo Ministério da Saúde em 2009 identificou que apenas 25% das crianças entre
2 e 5 anos e 38% das crianças entre 5 e 10 anos consomem frutas, legumes e
verduras. Guloseimas como balas, biscoitos recheados, refrigerantes e
salgadinhos ocuparam o espaço de refeições principais.
E a água? De repente esse bem essencial ao bom funcionamento do corpo humano
foi sendo esquecido. Em creches, escolas e hospitais é comum não encontrarmos
bebedouros. A água não está franqueada justamente a quem deveria receber
estímulo constante para ingeri-la. O estímulo está focado nos sucos
industrializados e nos refrigerantes.
E agora, já podemos responder quem são os donos do cardápio das nossas
crianças? E quais as conseqüências de seguirmos ao sabor do vento das grandes
corporações fabricantes de alimentos? E de não termos controle sobre a
publicidade dirigida ao público infantil?
Se o que queremos para nossas crianças não é um futuro de obesos desnutridos,
precisamos tomar as rédeas da situação e já. A informação continua sendo a
chave-mestra e, pais, educadores e profissionais da saúde precisam saber
identificar o que está escrito nos rótulos.
Se tomamos tantas medidas para a identificação de pessoas que entram nas nossas
casas e nas escolas, porque não adotamos estes mesmos cuidados antes de
permitir a entrada de substâncias no nosso organismo e das nossas crianças?
Nunca é demais lembrar que bons hábitos alimentares começam a ser transmitidos
na vida intra-uterina, que criança até dois anos não deve ser exposta ao sal e
que não se deve colocar açúcar em chás e mamadeiras de bebês. Muito menos
achocolatados, que contém açúcar e gordura em excesso.
Seguindo orientações da OMS, estão surgindo políticas públicas para redução do
sal nos alimentos industrializados, assim como campanhas de esclarecimento ao
público. Foram identificadas ações em 38 países, sendo a maioria na Europa. Já
o Brasil recém está iniciando algumas medidas nessa área. Em janeiro deste ano,
a Anvisa fez recomendações não obrigatórias para a redução, até 2014, em 10% no
conteúdo de sal do pão francês.
Também em países europeus, há regras rígidas em relação à propaganda dirigida a
crianças. Em terras nativas, dispensam-se comentários. Felizmente a sociedade
começa a dar sinais de reação.
Acreditando que um outro mundo é possível, que tal a gente sonhar com uma
sociedade em que a saúde das nossas crianças esteja acima dos interesses das
megacorporações?
(*) Noemia Perli Goldraich é doutora em Nefrologia pela Universidade Federal
de São Paulo (UNIFESP), pós-doutora em Nefrologia Pediátrica pela Universidade
de Londres, professora-associada do Departamento de Pediatria da Faculdade de
Medicina da UFRGS, nefrologista pediátrica do Hospital de Clínicas de Porto
Alegre e coordenadora do Núcleo Interdisciplinar de Doenças Crônicas na
Infância da Pró-Reitoria de Extensão da UFRGS.